QUACHURUM

O Guerreiro Protetor
(Guina, 20 novembro de 2004).

Antes do Grande Chefe e Feiticeiro Quachum morrer, partindo para a terra onde vivem seus ancestrais, revelou a Quachurum.
Agora, que serás o novo chefe da tribo... Terás que seguir o teu caminho... Sempre fostes o protetor de todos e serás... Agora... Apenas de uma só... Uma menina...
Quê? Uma menina? Então, a profecia estava certa! Vamos prosperar novamente, Grande Chefe e... – Foi interrompido Quachurum.
Quachurum... Quachurum... Escute-me... Não podemos sacrificar a criança... Ela morreria... E, antes disso, haverá conflito... E disputa entre todos os outros guerreiros... Você precisa partir, Quachurum... Precisa protegê-la... Faça um pacto de sangue com ela... Proteja-a... Leve-a daqui...
Grande Chefe, como posso fazer isso? Todos esperam essa menina há muitas luas. Todos estão, agora, lá fora esperando que eu leve a criança até eles.
Quachurum... Leve Qualcum e sua esposa Dibum, pois eles serão mortos se aqui ficarem... Eu vi através de sonhos... O futuro da tribo não será mais aqui... Será aonde vocês forem... Além do deserto... Há uma floresta... Vá, aqui vocês correm perigo... Eu estarei com vocês...
O que me pede? Isso é loucura!
Quachurum, prometa-me que não revelarás o sexo da criança e que a protegerás de tudo... Estou morrendo... Preciso descansar sabendo que minha filha estará bem... Prometa-me...
Sim, meu Grande Chefe, eu prometo proteger a sua filha.
Adeus, Quachurum... – E o sopro da vida levou seu espírito.

Naqueles tempos, a tribo estava à beira da extinção. As lutas haviam dizimado muitos guerreiros e, com eles, seus descendentes e suas mulheres. Uma maldição veio acelerar ainda mais esse processo. Todos os recém-nascidos seriam meninos e, ainda assim, nem todos sobreviveriam aquele tempo de trevas. Para garantir a continuidade e crescimento da tribo, era preciso que a primeira menina, que assim nascer, fosse sacrificada. Teria ela de gerar os novos guerreiros e, principalmente, novas mulheres. Só assim, a tribo poderia voltar a prosperar e voltar a ser a grande tribo que sempre fora.
A noite anterior levara a velha Grande Mãe. Ela investiu as suas últimas forças para ajudar a criança a nascer. Todos na tribo ficaram felizes e tristes ao mesmo tempo, pois a Grande Mãe estava morta. Ainda não sabiam o sexo da criança. Somente o chefe da tribo podia revelar-lhes, mas ele estava muito doente em sua rede e sem forças para andar. Quachurum, o Guerreiro, estivera com ele todo o tempo e, também, vira a velha mãe falecer.
Quachurum embrulhara a parte do sexo da criança com uma pele de tigre e, depois, toda a recém-nascida com uma parte maior da pele. Ao sair da tenda do Grande Chefe, Quachurum mentira para o seu povo dizendo que mais um menino tinha sido enviado pelo Deus Sol.
Todos os que restavam, e não eram muitos, ficaram desolados. Eles estavam confusos.
Desde que o Grande Chefe, e curandeiro, falara a eles sobre a profecia, nada tinha acontecido, pelo menos não até aquele momento.
Era óbvio que alguma coisa estava errada. A lua estava onde deveria estar e mais brilhante que a de costume, não havia nuvens na escuridão do céu e o descampado, uma clareira no meio da floresta, estava tão iluminado como durante o dia. Os sacrifícios que prescrevera o Grande Chefe haviam sido feitos com muita alegria e muita fé.
Afinal, o que dera errado? – Assim pensavam e perguntavam uns aos outros.

Quachurum tinha preparado um plano para proteger a criança e isso poderia custar-lhe a própria vida. Ele não concordava com o que falava a profecia, mas ali estava o futuro de seu povo, uma criança.
No final do dia, após os ritos cerimoniais de purificação do Grande Chefe e sua esposa, suas cinzas, postas numa cuia de casca de madeira, deslizaram na correnteza do rio Quixiran, onde os ventos que sopravam, rodopiavam as cinzas, num redemoinho, elevando-as aos céus.
Ao anoitecer eles sentaram-se em volta da fogueira e, em comunhão, puseram seus pensamentos. Apenas Quachurum, Qualcum e sua esposa Dibum não participavam desse conselho de guerreiros. Havia dúvidas e, por não ter sido mostrado para eles o sexo da criança, como era de costume, as evidências de que alguma coisa estava estranha não saíam de seus pensamentos. E por que Quachurum não estava ali para responder suas dúvidas?
- O que precisa saber, Deborum? – Perguntou Quachurum bem atrás deles.
Todos tomaram um susto e arregalaram os olhos quando ouviram a voz de Quachurum tão perto deles. Estavam tão perdidos em suas dúvidas que nem perceberam o guerreiro se aproximar. Eles suaram frio e um a um foram se retirando para suas cabanas em silêncio.
Quachurum sabia das intenções de seus amigos e já havia preparado seu plano.

O dia seguinte escureceu rapidamente. O tempo parecia compreender que algo estava para acontecer. As nuvens escureceram no céu e uma forte bruma baixou sobre a aldeia.
Quachurum, certificando-se de que todos estavam dormindo e que lá fora não havia nenhuma sentinela, pegou a criança, que dormia profundamente, colocou-a numa espécie de bolsa feita de pele de crocodilo e prendeu-a ao seu corpo.
O jovem casal já estava de pé, pronto para partir e armado de arcos e flechas, de lanças, machadinha e facas grandes. Qualcum era jovem, estatura mediana e forte como um touro. Sua esposa, Dibum, era um pouco mais baixa, olhos e cabelos negros, traços orientais delicados e suaves como ela própria, mas extremamente rápida, como uma águia.
Assim, sob a proteção da bruma, partiram floresta adentro levando a criança. Com passos apressados e silenciosos, queriam estar o mais distante dali quando os outros guerreiros acordassem.
Tinham tomado cuidados ao deixarem sua aldeia. Não queriam deixar pistas e rastros no caminho para não serem seguidos, mas seria uma tarefa quase impossível, pela sabedoria que a tribo aprendia desde cedo, não só da floresta como das artimanhas dos inimigos. Eles sabiam disso, apenas queriam ganhar vantagem e manter uma boa distância.
Lá na aldeia as nuvens começaram a se dissipar, e as brumas, também. Mas o tempo havia avançado e já era fim de tarde quando eles começaram a desconfiar da fuga dos seus amigos e da criança. Procuraram por Quachurum e o jovem casal, mas só encontraram suas tendas vazias. Ficaram furiosos e seus olhos estavam cada vez mais vermelhos de raiva. Acorreram para pegar suas armas e logo voltaram ao pátio central da aldeia. Deliberaram sobre o plano a ser seguido e decidiram que nada mais importava, a tribo já não existia mais e iriam atrás deles e matariam a todos. Mas ainda havia um pequeno problema: que direção tomar. Antes de qualquer coisa, precisavam descobrir o caminho tomado por Quachurum e seus amigos. Sabiam que Quachurum era astuto e queria enganá-los como fizera com a criança.

As pistas encontradas não faziam sentido algum. Precisavam correr contra a luz do sol, que apesar de estar escondido pela bruma, ainda clareava o dia. E a escuridão, que com certeza haveria de se estender por toda a noite, complicaria muito a busca pela pista certa. Mesmo assim, pintaram seus corpos, afiaram suas armas, soaram os tambores e, em volta da fogueira, dançaram seus ritos sagrados de guerra.

Quachurum e seus amigos tinham a vantagem de um dia e uma noite, mas sabiam que os seus perseguidores andavam muito mais rápidos do que eles com uma criança. Sabiam que era inevitável o reencontro com os guerreiros de sua tribo, e que no máximo até a conseguiria atrasar até o quinto sol, o que lhes dava uma boa vantagem, que não era tão grande assim. Mas com isso se preocupariam depois. Estavam ao passo de um dia do fim da floresta e isso com certeza o preocupava mais, pois viria o grande deserto, onde ninguém da sua tribo jamais ousara estar, e agora, ele precisava atravessá-lo.
Durante todo o caminho, iam juntando frutas, castanhas, ervas e água sempre que podiam, mas com o cuidado de não se atrasarem, não podiam perder tempo e, por isso, quase não paravam.
A noite caíra mais uma vez, e eles estavam exaustos, quando resolveram parar. O lugar, já escuro pela noite, era próximo de um rio corrente que deslizava pelas pedras, onde o barulho era ensurdecedor por causa de uma queda d’água de mais de 12 metros de altura. No local da queda d’água, formava-se uma clareira na floresta. Além da piscina natural. Cheio de pedras, era um belo lugar para se passar a noite, ou o dia, se não tivessem uma criança com eles ali, tinham que andar mais um pouco para encontrar um lugar mais tranqüilo para dormirem.
Caminharam mais adiante, descendo pelas pedras onde o rio escorria mais suave e por fim encontraram um lugar mais seco e plano. Adiantaram em fazer uma fogueira, apesar de isso servir de pista para seus perseguidores, precisavam fazer algo quente para o bebê e para eles também. Haviam conseguido uma pequena caça durante a fuga, e como de costume ofereceram parte dela aos espíritos que lhes guiavam e a mãe terra, que era em tudo generosa. Depois que refizeram suas forças, montaram acampamento e desfaleceram seus corpos quase mortos de cansaço.
A aurora despontava no horizonte, o céu começava a clarear com o levantar do Deus Sol.
- Dormimos demais. O corpo sempre amolece quando se descansa mais do que se necessita. Perdemos muito tempo. Vamos!
Em questão de minutos já estavam prontos para partir. Por um instante, Quachurum ficou imóvel no alto de uma pedra. A visão ia longe, mas a floresta, não. Dali ele podia ver até onde ela ia e via o mar de tons dourados de áreas em que o sol estendia sua luz.
- Vamos! Chamou seus amigos enquanto descia da pedra.
Seus companheiros o seguiam saltando de uma pedra para outra, cada vez se distancia do rio e embrenhando na escuridão da floresta que parecia não ter fim.
Ainda tinham boa vantagem sobre aqueles que os perseguiam, mas essa vantagem logo seria reduzida, pois os guerreiros de sua tribo sempre souberam andar na floresta com rapidez. Além disso, não tinham nem mulheres nem crianças para retardá-los.



***


A noite caía novamente e, lá atrás, Deborum e seus amigos chegavam nos restos do acampamento deixado para trás.
- Eles estiveram aqui. – Disse Deborum passando a mão sobre o chão de pedras onde Quachurum estivera. Na verdade, as pistas estavam em todos os lugares. Eles não se preocuparam em apagar nada, pois sabiam que não adiantaria, apenas perderiam mais tempo do que já tinham perdido.
- Com certeza eles vão descansar antes de enfrentar o grande mar de areia. E é esse tempo que vamos ganhar para alcançá-los. Hoje à noite, vamos seguir em frente e, quando o Deus Sol se levantar novamente, estaremos mais próximos deles. – Portanto. – Prosseguiu, bebam, pois será a última antes de enfrentá-los. Levem o que conseguirem.
Pela manhã já estavam entrando no deserto, mas o cansaço era visível naqueles guerreiros. O sol não só brilhava, como queimava como fogo, e o vento trazia uma fina cortina de areia pela qual eles mal conseguiam enxergar além de alguns passos à frente. E os rastros tinham sido encobertos. A tempestade de areia parecia empurrá-los de volta para a floresta.
Quachurum e seus amigos estavam bem à frente e a tempestade já tinha passado por eles. Estavam a meio dia de distância dos seus perseguidores - mas com a tempestade em cima deles com certeza esse tempo seria maior até saírem dela - e quase um dia do fim daquele deserto escaldante.
A lua voltou mais uma vez com a noite e eles resolveram descansar e se preparar para a batalha inevitável da manhã seguinte. Sobre as dunas, fizeram sua fogueira com poucos gravetos que haviam conseguido trazer até ali e prepararam o que lhes restava da daquela viagem; um pouco da caça, frutas e ervas. Alimentaram-se como famintos, devorando as migalhas com alvoroço e gula. Por fim, saciados seus estômagos, estenderam suas esteiras trançadas de finas palhas e deitaram seus corpos exaustos. Olharam para o céu sem nuvem alguma, as estrelas espalhadas naquela escuridão pareciam vaga-lumes, acendendo e apagando tão próximas quanto a lua. Era maravilhoso. Por um instante, pareciam esquecer de como eram suas vidas e puderam sentir uma certa felicidade em ver tudo aquilo. Dormiram por fim, mas Quachurum pediu que o jovem guerreiro Qualcum ficasse em alerta, pois agora era questão de horas até que fossem encontrados pelos seus perseguidores.


Dibum, a jovem mulher, despertou no meio da noite suando frio e assustada. O grito que deu fez com que os dois guerreiros acordassem também, e quiséssem logo saber o que acontecia.
Eles estão chegando! Eles estão chegando! Eu os vi. – Dizia aterrorizada como se estivesse, agora, em meio aos pesadelos.
Qualcum abraçou-a fortemente e manteve-a em seus braços em silêncio.
Vamos! – Chamou-os Quachurum. Os sonhos são presságios que não devem ser ignorados. Vamos! – Chamou-os novamente.
Puseram-se a caminhar mais rápido do que antes. A passos largos.
O sol ainda não havia mostrado seu esplendor, mas o céu começava a clarear novamente e, dessa vez, amanheceu com nuvens avermelhadas.
- Vejam as nuvens... o dia será sangrento.
Nisso, a uma certa distância atrás deles, os outros guerreiros da tribo os avistaram e começaram a correr no seu encalço.
Quachurum, olhando para trás, também os avistou e resolveu parar e se preparar para o inevitável. Precisava dar cabo àquela perseguição antes de o sol se pôr novamente. Além disso, estavam mais descansados. Certamente os seus perseguidores passaram a noite correndo sem descanso para alcançá-los tão depressa. Precisavam contar com isso a seu favor.
Fincou a sua lança no chão, retirou a criança de suas costas e entregou-a a Dibum e disse.
- Proteja-a com a sua vida e eu protegerei a sua com a minha.
Ela nada disse, apenas pegou a criança em seus braços.
O sol se erguia no horizonte e começava a clarear as dunas mais altas. Os seus inimigos ainda estavam a algumas horas de distância, mas podiam ser vistos ao longe.
- Qualcum, meu jovem amigo, não temas. Eles não são páreos para mim, e
quando eles virem seus amigos caírem, vão tremer, e aí, estarão perdidos.
Principalmente, quando eu matar Deborum.
- Quero que fique na frente da sua companheira agachado para protegê-la e espere até que algum deles passe por mim. Preste atenção, estando o inimigo de pé o seu golpe levará mais tempo para atingi-lo, pois o arco da curva será maior. Além disso, ele terá que se curvar em sua direção e abrirá a guarda para você. Primeiro, corte-lhe as pernas e, quando ele cair, dê cabo dele.
- E mais uma coisa. Não hesite em matá-los, pois eles não hesitarão em matar você e levar a criança e sua Dibum.
Essas palavras ficaram cravadas no coração de Qualcum. Em seguida, a alguns passos da sua companheira, ele ajoelhou-se de costas para ela e ficou aguardando o início da batalha.
Quachurum, deixando seu jovem amigo, foi ter com Dibum novamente. Ele agachou-se próximo dela, pegou uma faca pequena e, abrindo a própria mão, cortou-a e aguardou que o sangue surgisse. Em seguida, pegou a pequena mão da criança e fez o mesmo e, para seu espanto e de Dibum, ela não chorou, apenas sorriu como se entendesse o propósito daquilo. Quachurum colocou a mão da pequena sobre a sua e disse:
- Eu não preciso disso para protegê-la, mas seu pai, o Grande Chefe, me fez prometer que eu seria seu irmão e protetor. E mesmo que eu não fosse, por você ser filha dele e também a pequena líder de um povo, o mesmo que, agora vem para sacrificá-la, estarei sempre pronto para servi-la.
Dizendo isso, Quachurum ergueu-se. Guardou a pequena faca na base da perna e em seguida puxou a grande que tinha na cintura. Foi para onde tinha fincado sua lança e ficou ali esperando a aproximação de seus inimigos.


* * *


Seus inimigos chegavam sem demonstrar o cansaço que deveriam. Eram, assim como Quachurum, fortes e ágeis, e todos eram hábes na luta, mas jamais enfrentaram o melhor guerreiro dentre eles. Além disso, o temor e o respeito que tinham por Quachurum era unânime.
Por fim, chegaram. Deborum, liderando aquela caçada, falou primeiro:
- Só viemos buscar a criança, vocês podem partir em paz para onde quiserem, não os seguiremos mais.
- Voltem, esta é a sua melhor opção. – retrucou Quachurum.
- Assim como você, os últimos de uma tribo que quer prosperar e viver, estamos oferecendo uma alternativa passiva, pois não queremos lutar. Dê-nos a criança e partam.
- Não existe mais o que sucumbiu. O que restou está sendo encaminhado para outro lugar, aonde os espíritos nos levarão. E lá, não tem lugar para vocês.
- Você quer destruir nossa tribo ignorando os presságios enviados pelos espíritos e quer nos fazer acreditar que eles estão conduzindo-os a um lugar? Estamos pedindo que nos entreguem a criança para que se cumpra o que foi profetizado pelo Grande Chefe, se não nos a der, usaremos da força.
- Só se eu estivesse possuído por algum espírito mau. Eu não teria andado tanto para entregar-lhe uma criança inocente no meio do deserto. – foi a resposta.
- Ataquem! Matem todos!! – Gritou Deborum partindo para cima de Quachurum.
Este girou o corpo desviando o golpe da lança de seu inimigo e com a grande faca cortou o braço de seu oponente. O sangue jorrou no ar. Os outros atacaram Quachurum, que se defendia e atacava ao mesmo tempo. Um deles passou por ele e foi ao encontro do jovem guerreiro que assistia a tudo ajoelhado a poucos metros atrás da linha de frente. Ao ver Quachurum, ali joelhado, precipitou-se para matá-lo enfiando-lhe a ponta da lança, mas Qualcum rolou seu corpo para frente e cortou-lhe a perna, seu inimigo caiu com força no chão e, antes que pudesse reagir àquele golpe, outro já o atingia mortalmente. Seu corpo rolou duna abaixo. Qualcum voltou à sua posição de antes e esperou pelo próximo que passasse.
Enquanto isso, Quachurum desferia golpes como um furacão e seus inimigos caíam por terra. Deborum, aproveitando a distração de Quachurum no auge da luta, quis surpreendê-lo e atacou novamente com sua lança em riste e, assim que Quachurum puxava sua faca do peito de mais um inimigo, foi atingido pela lança do Deborum na linha da cintura bem ao lado do umbigo. Ele golpeou quebrando a lança, e isso fez com que perdesse o equilíbrio e fosse de encontro à grande faca de Quachurum, pela qual foi trespassado na garganta. Deborum caiu morto.
Quachurum, ainda com um pedaço da lança fincado na sua cintura e o sangue escorrendo pela perna, viu Qualcum se defendendo de dois inimigos. Sem pensar acorreu gritando para ajudar seu jovem amigo que lutava tão bravamente. De longe, arremessou sua lança que foi certa nas costas de um deles. Qualcum se defendia como podia do outro, mas esse era muito maior e mais forte que ele e estava para acabar com sua vida não fosse o golpe que Quachurum desferiu nele. O corpo do inimigo tombou ali mesmo.
A batalha estava acabada, eles tinham vencido. Mas Quachurum perdia muito sangue.
Eles estavam exaustos. Lá em cima não havia mais sol, agora ele se escondia do outro lado do horizonte. Eles se olharam, contemplaram toda aquela matança, corpos estendido, pelo deserto como um tapete vermelho, cuja cor mal se podia distinguir naquele lugar quase sem luz.
A noite havia caído.
- Vamos, precisamos alcançar a floresta para nos recompor... mas suas palavras foram interrompidas pela dor que sentia no abdome.
- Temos que aproveitar que o sol se foi e alcançar a floresta ainda hoje. – A dor era forte e latejante e ele mal conseguia pronunciar as palavras.
Qualcum correu para socorrer seu amigo, segurando-o antes que ele caísse. Era jovem e forte, mas Quachurum tinha quase o dobro do seu tamanho e seu peso era indescritível. Fez-se de apoio sob os seus braços enquanto a jovem esposa de Qualcum lhe entregava uma lança para que ele se apoiasse e ajudasse Qualcum a levá-lo.
Mas não foram muito longe. O peso de Quachurum era enorme e, sua dor, também. Por fim, decidiram que era melhor descansarem ali mesmo e, retomar a caminhada, nos primeiros raios solares.
A escuridão da noite se iluminou numa pequena fogueira que conseguiram fazer. O silêncio do deserto era quebrado apenas pelo gemido de dor de Quachurum, que já sentia febre pois estavam sem ervas para curar a ferida aberta. Seus sonhos eram delírios e pesadelos e encontros com seus antepassados.
Na manhã seguinte eles se surpreenderam pela visão à frente. A floresta estava a poucos metros de distância deles. Era inacreditável. Era com se a floresta tivesse se deslocado até eles.
Eles se alegraram e logo se levantaram e partiram dali.
Mas Quachurum não estava nada bem. Seu ferimento estava em péssimas condições e ele estava perdendo muito sangue, mesmo com uns trapos em cima. Ainda queimava de febre e estava cada vez mais fraco.
Por fim, conseguiram alcançar a floresta. Ali, Qualcum e sua esposa Dibum cuidaram do guerreiro com ervas e água, que agora, tinha em abundancia. Ficaram ali até que a febre baixasse. Haviam se passados três luas desde a batalha no deserto. Quachurum recuperar-se, mas não podia se levantar ainda. Eles se alimentavam de frutas de pequenas aves e peixes que Qualcum conseguia.
- Vocês precisam partir. Levem a criança com vocês e cuidem dela como a um filho. Não temam, eu estarei sempre com vocês. Eu não posso ir além daqui. – disse o guerreiro quase desfalecendo.
- Não podemos deixá-lo aqui. – respondeu Qualcum. Esperaremos que se estabeleça suas forças e então, partiremos juntos para perto do grande rio de sal.
- Já cheguei onde deveria chegar. Aqui devo ficar e como foi profetizado, meu espírito não partirá dessa floresta até encontrar a passagem que o leve para a terra dos nossos ancestrais, minhas cinzas se juntará ao da mãe terra. Vocês, agora, servem a pequena do povo que restou. Não esqueçam dos ensinamentos e dos nossos costumes e ensine-lhe as histórias de seu povo. Ao completar o ciclo dos dez nascimentos, entregue o totem do seu protetor.
- Agora, vão! Sigam o caminho que levam ao grande rio de sal.
O jovem casal juntaram suas coisas tristemente, lamentando a perda da companhia do guerreiro amigo. Por fim, estavam prontos para partir. Dibum com uma cesta de palha na cabeça com alguns mantimentos e a criança presa nas costas. Qualcum portava apenas suas armas, uma lança, uma faca na cintura e arco e flechas que havia feito com aquela abundante floresta.
- Que os espíritos dos nossos ancestrais os acompanhem. – Assim falou Quachurum quase sem forças para expressá-las.
Eles nada disseram, apenas se puseram à caminha tristemente.
Qualcum, ainda voltou-se para acenar mais uma vez para seu amigo, mas ele já tinha desaparecido.

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